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Diferentes tipos de curtimenta do couro

sexta-feira, 24 de março de 2023
Wet-blue, wet-white e couro vegetal são os principais processos de curtimenta utilizados na indústria de curtumes. Conheça as características de cada um dos processos.
Diferentes tipos de curtimenta do couro

A curtimenta designa o processo de conversão das peles de diferentes animais num material não putrescível e, simultaneamente, de transformação de um subproduto da indústria alimentar com pouco valor económico e aplicações bastante limitadas, num material nobre, de elevado valor económico e com inúmeras aplicações possíveis, nas quais se incluem o calçado, a marroquinaria, o vestuário e o automóvel, entre outros. Como tal, este processo consiste em alterar quimicamente a estrutura e a composição das proteínas da sua estrutura fibrosa, conferindo essencialmente estabilidade hidrotérmica, boa respirabilidade, durabilidade e alta resistência físico-mecânica. Estas propriedades só podem ser obtidas através do tratamento com diversos agentes curtientes e diversos tipos de curtimenta, entre os quais se destacam os processos wet-blue, wet-white e couro vegetal como os mais usuais na atualidade.

O couro curtido com sais de crómio é vulgarmente designado por wet-blue, assim conhecido pelo facto de ter uma cor azulada. Este tipo de couro é o mais utilizado no fabrico de calçado e artigos de pele, uma vez que apresenta excelente estabilidade térmica e, ainda, devido à sua versatilidade, dada a variedade de produtos de couro que se podem produzir com o wet-blue, em termos funcionais e de acabamentos. Além disso, uma outra característica interessante prende-se com o facto de a curtimenta a crómio ser o processo mais rápido para a produção de couro e, por isso, economicamente mais rentável. 

Contudo, tem vindo a ser colocada uma restrição química devido à possibilidade de formação de crómio hexavalente em situações muito particulares. Embora no processo de curtimenta seja utilizado unicamente crómio trivalente, este pode oxidar dando origem ao crómio (VI). Como sabido, o crómio hexavalente tem um efeito negativo na saúde, dado que é bioacumulável, muito tóxico, mutagénico e carcinogénico, devido à sua elevada capacidade de penetração membranar e forte potencial oxidativo, motivo pelo qual o controlo da sua ocorrência é fundamental. Para reduzir esse risco, existem medidas preventivas que podem ser adotadas, nomeadamente impedir elevados valores de pH após curtume, evitar a utilização de gorduras não saturadas no processo e, ainda, utilizar agentes antioxidantes à base de extratos vegetais, em particular o de tara e o de mimosa. Ademais, apesar desses cuidados o wet-blue continua a constituir um problema ao nível dos resíduos gerados no processo de transformação porque, no fim de vida, os produtos manufaturados com crómio representam um risco que obriga a uma gestão ambiental muito rigorosa. Só assim se pode garantir a ausência de perigosidade no destino dos respetivos resíduos.

O processo wet-white é a designação do couro alternativo ao processo wet-blue e surgiu inicialmente de couro que, curtido com alumínio, apresenta uma cor muito clara, quase branca. Apesar de gerar artigos de couro com cores vivas e muito brilhantes, este material não tem a estabilidade térmica da pele curtida a crómio e apresenta alguns problemas de reversibilidade do processo. Esta alternativa também tem algumas desvantagens em termos ambientais e de toxicidade, uma vez que a exposição a elevadas quantidades de alumínio pode ter graves consequências para a saúde humana. Porém, recentemente tem vindo a ser estudada uma alternativa que poderá ser válida – um curtume misto, com alumínio e agentes de base fenólica, como taninos sintéticos e extratos vegetais.

Nos últimos anos, tem-se ainda afirmado no setor uma alternativa ao próprio alumínio: o curtume a titânio, que permite obter um couro de cor clara, ligeiramente amarelada, e com uma estabilidade térmica aceitável. Apesar deste processo ainda não ter sido suficientemente explorado no que concerne ao fabrico de diferentes artigos de couro, também apresenta alguma toxicidade, em especial devido ao dióxido de titânio, pelo que deverá ser devidamente investigado. Dada a toxicidade dos metais, o setor dos curtumes teve necessidade de desenvolver alternativas ao crómio isentas de riscos, surgindo assim um processo de curtume que utiliza maioritariamente agentes de curtume orgânicos não vegetais, como os aldeídos, principalmente o glutaraldeído coadjuvado por taninos sintéticos. Tal processo permite obter couro que, apesar de ter estabilidade térmica inferior à do curtido com crómio, evidencia um bom desempenho e garante peles claras, ligeiramente amareladas, apresentando uma versatilidade satisfatória para o fabrico de diversos artigos. À semelhança dos processos anteriores, este levantou alguns problemas no que diz respeito à toxicidade do glutaraldeído e, face a esses riscos, têm sido desenvolvidos outros agentes orgânicos com potencial para produção de wet-white isento de metais e com estabilidade térmica aceitável. Como tal, este tipo de curtume necessita de muito mais investigação sobre as suas aplicações em diferentes artigos de couro. Ainda assim, a curtimenta wet-white constitui, no momento, a alternativa ao wet-blue mais adequada com a vantagem da biodegradabilidade dos resíduos gerados. 

A curtimenta a vegetal é anterior ao aparecimento do crómio como agente de curtume e traduz-se na utilização de extratos vegetais de diversas plantas, nomeadamente da madeira, cascas, folhas e frutos de diversas árvores, dado o seu elevado conteúdo de taninos e as suas propriedades antioxidantes. Da lista de plantas com esse potencial, destacam-se os extratos de Mimosa, de Castanheiro e o de Quebracho. Contrariamente ao que acontecia nos primórdios, o aparecimento de taninos sintéticos contribuiu para acelerar o processo deste tipo de curtimenta e encurtá-lo consideravelmente, reduzindo-o, em certos casos, de meses para dias.

Apesar do processo wet-blue representar o sistema de curtimenta mais utilizado até ao momento, a curtimenta vegetal é insubstituível na produção de certos tipos de artigos, como é o caso de solas de couro e de vaquetas. Considerando os problemas associados ao uso do crómio e às alternativas orgânicas de wet-white no que diz respeito à sua toxicidade, além de serem de origem fóssil, o couro vegetal já é uma aposta sólida no fabrico de calçado e marroquinaria. A sua estabilidade térmica é inferior à dos processos de wet-blue e wet-white, mas essa dificuldade pode ser ultrapassada com agentes auxiliares que a tornam equiparada ao wet-white. No entanto, é um curtume que necessita de algum trabalho de desenvolvimento industrial no sentido de o tornar mais versátil para uma maior gama de artigos de couro e para minimizar o seu impacto ambiental sobre as águas residuais com o recurso à reciclagem dos banhos de curtume.

De um modo geral, o curtume vegetal tem conquistado os industriais do setor pela sua sustentabilidade e pela ausência de risco para a saúde humana. No entanto, o principal entrave dos industriais em implementar processos alternativos ao couro curtido a crómio e ambientalmente mais amigável poderá passar exclusivamente pelo custo do processo de curtimenta, que poderá ser cerca de duas vezes superior no caso da curtimenta wet-white e cerca de quase quatro vezes superior na curtimenta vegetal (tendo em conta apenas a fase de piquelagem e curtume).

Note-se que, ao longo do presente artigo foi dado particular ênfase às características de cada um dos diferentes tipos de curtimenta, e não tanto à sustentabilidade dos processos produtivos.

Este artigo foi desenvolvido no âmbito do projeto BioShoes4All - Inovação e capacitação da fileira do calçado para a bioeconomia sustentável, projeto nº 11, investimento apoiado pelo PRR - Plano de Recuperação e Resiliência, na sua componente 12 - Bioeconomia Sustentável e pelos Fundos Europeus NextGeneration EU.
Esta publicação reflete apenas as opiniões dos autores, o PRR - Plano de Recuperação e Resiliência e do Fundos Europeus NextGeneration EU não podem ser responsabilizados por qualquer uso que possa ser realizado com as informações nela contida.

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