Em entrevista ao Jornal LABOR, Fortunato Frederico, um dos fundadores do Grupo Kyaia, falou sobre a sua mais recente aposta, a plataforma digital Overcube.
"As vendas online vão ser efetivamente parte integrante do comércio mundial."
A Overcube foi lançada em 2018 para agitar e revolucionar o mundo do calçado e acessórios online. O sonho tem sido uma realidade?
Esse era um sonho do Grupo Kyaia desde 2001 quando fizemos a primeira loja de venda online com a “bênção” do atual Sr. ministro do Planeamento, Dr. Nelson de Souza. Acabou por ser cedo demais, mas ficou sempre cá a ideia de que mais tarde ou mais cedo teríamos de avançar com um projeto mais consistente. Estamos sempre a aprender e foi uma aprendizagem que fizemos com aquela loja. Ao fim de dois anos tivemos de a fechar porque ela não vendia. Mas ficou sempre a ideia de que a venda online seria sempre uma parte forte do futuro.
Quando sentiram que deviam voltar a apostar nas vendas online?
Entretanto, as coisas foram mudando. Em 2016, 2017, surgiram mudanças no mercado quer por questões geracionais, quer por questões de manutenção e/ou de custos e começaram a fechar algumas lojas, tanto em Portugal como na Europa. Aí pensamos em avançar com a plataforma. Sabíamos que o investimento seria muito forte.
Aí soube que era o “tempo certo” para concretizar o sonho do Grupo Kyaia?
Podemos dizer que sim. Não sei se foi por ter sido presidente da APICCAPS (Associação Portuguesa dos Industriais de Calçado, Componentes, Artigos de Pele e seus Sucedâneos) que me permitiu conhecer bem o tecido empresarial. O que sabia é que se havia mudanças para nós também ia haver mudanças para os outros fabricantes. Não eramos vítimas das mudanças sozinhos. Portanto, foi a hora do arranque e entre agosto, setembro e outubro cerca de 31 técnicos qualificados deram corpo à equipa da Overcube cuja inauguração contou com a presença do senhor primeiro ministro, Dr. António Costa.
Tenho a certeza que muitas marcas têm vendido para mercados que não teriam vendido se não estivessem na plataforma.
Qual o principal objetivo da Overcube em relação à indústria do calçado?
Acima de tudo ajudar a internacionalizar a indústria e lançar novos jovens que queiram apostar na indústria. Portanto, pensei em criar uma plataforma que, embora fosse um negócio para nós, visava também ajudar a indústria nacional a dar o seu salto qualitativo. Temos as feiras que são uma ferramenta ótima, mas sentimos que já começava a ser preciso algo mais, um novo paradigma.
Qual a avaliação desta aposta no digital?
Ao fim de dois anos, iniciámos uma análise ao investimento realizado. Chegámos à conclusão que era necessário racionalizar os custos com a aquisição dos novos clientes. Neste momento estamos a trabalhar num novo paradigma. Investir sim, mas com racionalidade. Quero salientar que foi este nosso investimento que nos fez chegar a toda a Europa com mais de 500 milhões de habitantes, e aos EUA, Canadá e Nova Zelândia com cerca de mais 500 milhões de habitantes. Gastámos muito dinheiro, mas efetivamente a Overcube hoje já está em muitos mercados.
Das 60 marcas registadas, quantas são portuguesas?
Das 60 marcas que temos, cerca de metade será portuguesa e as outras estrangeiras. Tenho a certeza que muitas marcas têm vendido para mercados que não teriam vendido se não estivessem na plataforma. Por exemplo, a Foreva hoje vende para mercados que nunca venderia se não estivesse na plataforma. A indústria não tem capacidade financeira para fazer tantas feiras
Isso demonstra que a internacionalização pode ser feita a par das feiras e da presença no digital?
Vai ao encontro daquela minha ideia de que seria uma ferramenta para ajudar a indústria portuguesa a internacionalizar-se de outra forma. Se não tivéssemos investido em feiras como investimos, de certeza que, hoje, a Fly London não era conhecida e procurada como é no mundo. Com o seu conhecimento de mercado, a Fly é a marca que mais vende na plataforma. Isso é resultado de todo o dinheiro que gastámos nas feiras a internacionalizar a marca.
Então a presença nas feiras continua a ser importante para as marcas?
Sim. Só que nem toda a indústria estará em condições de fazer as feiras que fizemos. Por isso, a plataforma seria uma forma mais económica e segura de ajudar essas marcas a chegarem aos clientes.Vendemos mais nestes dois anos de experiência na plataforma do que em dois anos nas feiras porque andámos muitos anos a fazer feiras em que não se vendia um par. Hoje temos um grande mercado nos Estados Unidos, mas andámos lá seis anos sem vender um par.“Pensei que este era um projeto que podia ?vender ? com facilidade à APICCAPS, mas não foi esse o resultado”
A indústria do calçado não tem capacidade para estar presente em tantas feiras?
A indústria não tem capacidade financeira nem recursos humanos para fazer tantas feiras. Por isso, digamos que muitas marcas não são conhecidas. Podem ser muito boas marcas no mercado nacional, mas no mercado internacional representam pouco. A plataforma é, assim, um meio para as divulgar também no exterior.
Tentou “vender” este projeto a alguém?
Sim. Pensei que este era um projeto que podia “vender” com facilidade à APICCAPS, que poderia interessar-se por esta plataforma como se interessa pelas feiras, mas infelizmente não foi esse o resultado. A APICCAPS sempre se empenhou nas feiras, foi uma política de sucesso, foi assim que a indústria cresceu, mas estava convencido de que ia acarinhar, digamos, este projeto. Tivemos de repensar o projeto.“A plataforma não está a crescer exponencialmente, mas está a crescer sustentadamente”
Que alterações sofreu o projeto?
A plataforma vai continuar a trabalhar num novo paradigma de maior racionalida-de, digamos, em termos de gastos, mas vamos continuar a investir e estamos a fazer um novo projeto mais equilibrado em termos de custos e de ganho do cliente.Neste momento a plataforma não está a crescer exponencialmente, mas está a crescer sustentadamente. O que nos dá um pouco mais de força para continuarmos a investir. Não há outra saída, se houvesse procuraríamos, mas não há. As vendas online vão ser efetivamente parte integrante do comércio mundial.
Encontrou outros condicionalismos pelo caminho?
Parace que há condicionalismos da União Europeia com regras que têm de ser cumpridas. Nunca tivemos apoios para fazer alguma iniciativa porque esbarrávamos nas regras da Comunidade Europeia. Não somos especialistas na cativação desses meios de subsistência, mas não acho justo. Uma empresa que se esforça por dar emprego e dinamizar a economia nacional, a Comunidade Europeia em vez de a apoiar, marginaliza-a? Não aceito isso. O meu antieuropeísmo veio um pouco dessa realidade. Parece que não mudou ainda. Queríamos continuar a investir com força, com a ajuda da União Europeia, mas tivemos de repensar o projeto. Reduzimos as 30 e tal pessoas que estavam a trabalhar nessa área para 20. Só assim podia continuar a ser sustentável e razoável. Não chegámos a uma situação de rutura, abrandámos e estamos a repensar no projeto. Os fundos da empresa não esticam conforme o nosso gosto e têm de ser racionalizados e estimados.O meu antieuropeísmo veio um pouco dessa realidade.
Quanto investiram na Overcube?
Ao longo de dois anos, investimos 4,5 milhões de euros de fundos próprios da Fortunato O. Frederico, que é dona da Overcube. Estava à espera que a plataforma crescesse mais, embora tivéssemos também faturado 4,5 milhões, mas o esforço financeiro é muito grande para que possamos sozinhos fazê-la crescer ao ritmo a que estamos habituados a que os nossos projetos cresçam.
Qual o balanço do retorno?
Estamos num bom caminho.“Os fundos da empresa não esticam conforme o nosso gosto e têm de ser racionalizados e estimados”
Quantos clientes tem?
Hoje já tem cerca de 40 mil clientes. Já valeu a pena. Neste momento a maior parte é estrangeira.
As vendas abrandaram com a pandemia?
Sim. As vendas baixaram em massa, em março, fruto da pandemia que estamos a viver. Foi o patamar mais baixo que atingimos, mas a satisfação é que, a partir de abril e maio, as vendas voltaram a crescer aos níveis antes da pandemia. Como temos uma nova política de investimento nas redes sociais, estamos a conseguir crescer lentamente. E como já diz o ditado: “grão a grão enche a galinha o papo”.
Qual o resultado da primeira iniciativa solidária da Overcube Colletiva?
Superámos o objetivo definido ao conseguirmos doar 970 batas cirúrgicas, em vez das 600 defini-das, ao Serviço Nacional de Saúde (SNS). Os profissionais do SNS são os nossos heróis do momento. De junho a setembro decorre uma segunda iniciativa que visa apoiar os profissionais que prestam apoio nos lares de idosos . “Os profissionais do SNS são os nossos heróis do momento”
Uma outra aposta vossa no digital é o showroom virtual “Shoeply”...
Todos os anos, duas vezes por ano, costumamos fazer uma reunião com os clientes internacionais, onde apresentamos a coleção. Eles vêm a Portugal e trabalhamos durante três dias sobre a coleção. Com a pandemia não foi posssível chamá-los cá. Na primeira semana de junho fizemos a apresentação a nível mundial através da plataforma em que toda a gente estava em sua casa a ver a coleção e a fazer os seus comentários. Estive a assistir um pouco e fiquei satisfeito porque a nossa empresa de programação, informática e software criou uma plataforma interessante, onde estavam cerca de 40 pessoas via computador. Ao fim do dia já tínhamos informações mais precisas e antecipadas sobre a coleção. Demonstrou ser um meio mais prático e económico de trabalhar uma vez que já sabíamos o que tinha agradado ou não aos nossos agentes, quando antes só dias mais tarde o sabíamos. Esta nossa empresa desenvolve algoritmos para a nossa produção nas fábricas de calçado.
Como está a marca cem por cento digital Rawcube?
Neste momento está estacionária porque temos problemas mais importantes a resolver. Temos clientes a pedir para anular encomendas e a pedir desconto porque não têm dinheiro para pagar. O mercado não está muito recetivo a novos projetos. Este é um projeto que vai aguardar até que a pandemia seja vencida.“Elas (lojas física e online) vão coexistir de forma mais racional.
A vossa aposta no digital é uma aposta ganha?
Sem dúvida. Esta pandemia obrigou a parar e a refletir. As pessoas lançaram as suas dúvidas. Hoje tenho a certeza que mesmo sem as ajudas devíamos ter antecipado as vendas online, um ou dois anos pois as barreiras que enfretamos hoje já tinham sido ultrapassadas, como as vamos ultrapassar agora.
Acredita num casamento entre a loja física e a loja online ou uma vai anular a outra?
Não prevejo que uma vá extinguir-se em favor da outra. Elas vão coexistir de forma mais racional. Chegámos a ter uma rede de 80 lojas, que hoje está reduzida a metade e durante anos deu prejuízo, mas teimámos e aguentámos o prejuízo. Hoje temos cerca de 40 lojas e vamos prosseguir o nosso caminho, ajustando conforme as necessidades. As lojas físicas vão continuar a existir porque são úteis para o projeto.
A história do grupo
A Kyaia foi fundada por Fortunato Frederico e Amílcar Monteiro em 1984 e lidera o grupo empresarial com mais de 600 trabalhadores com um volume de negócios de 55 milhões de euros.Além da produção de calçado, o modelo de negócio estende-se às áreas de distribuição, retalho, imobiliário e ainda tecnologias de informação.O grupo é responsável por marcas de sucesso como a Fly London, a Softinos, a Foreva e As Portuguesas. A Fly London é a principal marca do grupo criada em 1994. Nasceu como marca de calçado, mas estendeu-se a outras áreas de produto como coleção de carteiras e óculos de sol.A Overcube nasceu em 2018 do desejo do grupo em agitar e revolucionar o mundo do calçado e dos acessórios online.
Overcube em números
4.453,779 milhões de euros de investimento: 2.308,251 milhões em investimento e marketing, 1.705,591 milhões em pessoal, 321.739 mil euros em equipamento e 118.198 mil euros em outros gastos
21 colaboradores
61 marcas: 30 Portugal, 13 Espanha, 9 Itália, 3 Reino Unido, 2 Canadá, 1 Alemanha, 1 Estados Unidos da América, 1 Holanda e 1 Polónia
39.471 clientes: 11.411 em 2018 e 28.060 em 2019
5.126.958,21 milhões em vendas: 1.200.715,01 em 2018 e 3.926.243,2 em 2019
(Entrevista retirada na integra do Jornal LABOR - https://labor.pt)