São quase 46 anos dedicado à produção de sapatos de elevada qualidade.Carlos Santos começou a trabalhar nos escritórios da Zarco, uma empresa de São João da Madeira, fundada em 1942, e acabou por, algures no início do novo milénio, tornar-se no seu único acionista.
Viagem ao mundo dos sapatos de luxo
Tem 61 anos, acumula 46 de trabalho e olha para a reforma com um enorme bocejo: Carlos Santos - dono da empresa Zarco e da marca que leva o seu próprio nome - só parece estar verdadeiramente em casa quando está na fábrica, no meio dos moldes, dos desenhos, dos colaboradores, das máquinas que furam, colam, esticam, cosem e dão forma final aos sapatos. Poucos portugueses os conhecem: em Portugal, só em Lisboa e no Porto é possível adquirir uns sapatos da marca Carlos Santos - cujo preço médio ronda os 290 a 300 euros - ficando melhor sorte para os belgas (onde a empresa tem uma loja própria) e para o resto do mundo, para onde segue "a quase totalidade da produção, que fatura dez milhões de euros por ano", refere o próprio Carlos Santos com visível humildade.
Pelo que tem em vista há-de ser sempre assim: projectos de novas lojas "só para Paris" e talvez Nova Iorque, por muito difícil ou longínquo que essas apostas possam parecer. Mas isso não lhe importa nada: traçar projectos para a empresa - por muito que alguns possam parecer um sonho - é uma das suas funções. "Não tenho pressa", afirma. "Mas tu achas que vais durar mais 100 anos?" pergunta-lhe, para o espicaçar, uma das filhas (tem duas, mais um rapaz), Ana Raquel Santos, seu braço direito na administração, quando o ouve a estabelecer metas lá para o futuro.
Tudo leva a crer que Carlos Santos não irá viver mais cem anos, mas a filha - que, acredita, irá suceder ao pai no topo da administração executiva da empresa, "quando ele decidir retirar-se para uma espécie de presidência" não executiva - assume que vai fazer-lhe a vontade: "Farei tudo para abrirmos uma loja em Nova Iorque e em Paris, como forma de homenagear o meu pai".
Mas isso é lá para a frente. Para trás ficam os 46 anos de trabalho, que começaram muito cedo, quando Carlos Santos tinha apenas 14 ou 15 anos e uma vontade pouco comum de fazer coisas. "A Zarco já existia desde 1942, era de uma família de São João da Madeira e eu entrei para a área dos escritórios", recorda, mas a coisa não pegou: "Não gosto de papéis, nunca gostei e continuo a não gostar". Ao contrário, a produção foi um encontro feliz: "Apaixonei-me por aquilo", o que, admite, é a melhor forma de vender um produto. Estava decidido.
Quase a chegar à maioridade (à de agora, porque na altura a maioridade era aos 21), Carlos Santos passou a ser vendedor dos sapatos produzidos na Zarco. Sem as mordomias de agora: "Metia-me num táxi ou na camioneta da Rodoviária" e lá ia país fora, à procura de compradores e não era com malas de rodas, mas sim com atados de caixas.
A primeira vez em Itália
Havia mercado em Portugal na medida certa, mas a Zarco assumia perspectivas mais amplas - como de resto parte da economia, farta de estar enclausurada sobre quatro paredes, duas delas o mar, outras tantas a infindável Espanha. Os primeiros passos tinham sido dados ainda antes de 1974, quando Portugal passou a fazer esforços verdadeiros para retomar uma medida que Salazar não tinha chegado a interiorizar: a adesão à CEE, depois da entrada na OCDE. Os grandes grupos económicos tinham tomado a dianteira - o que não podia deixar de ser de outro modo: a contingentação industrial continuava a marcar a falta de desenvolvimento da economia - com os Mello e Champalimaud à frente, mas os outros haviam de ir atrás.
Carlos Santos saiu do país pela primeira vez como vendedor da Zarco. "Tinha uns 20 ou 21 anos. Fui a Itália, que era, como ainda é hoje, a Meca do calçado de design; queria ver como faziam os melhores de todos". Até aí, a Zarco limitava-se a exportar para Inglaterra, mas sob marca de cliente.
Foi uma viagem que serviu de ‘antes e depois para Carlos Santos, que ali descobriu as três coisas que haveriam de passar a ser a sua própria imagem de marca: inovação, criatividade e produção de excelência. "Eram imbatíveis", diz, e já tinham inventado tudo: ‘só era preciso fazer como eles.
Entretanto, dobrada a casa dos 30, Carlos Santos decidiu avançar para a aquisição de uma quota na empresa, ao mesmo tempo que um filho do dono (hoje com 84 anos) fazia o mesmo. Foram sócios paritários durante vários anos (e bons amigos até à data), até que, algures por volta do início do milénio, Carlos Santos passou a deter a totalidade do grupo. Se a estratégia da empresa já passava pelos três pilares que Carlos Santos ‘descobriu em Itália, a partir de então ela aprofundou-se ainda mais.
Manuel Castro Almeida, secretário de Estado do Desenvolvimento Regional e antigo presidente da Câmara de São João da Madeira, conhece bem Carlos Santos e o seu percurso: "Entrou como ajudante e foi tomando a posição dos accionistas até ficar dono da fábrica, sempre de forma amigável. Os antigos accionistas reconheceram-lhe talento e capacidade", diz.
Em pouco tempo o agora dono da empresa sentiria na pele (não na sua, mas na dos outros) a justeza da decisão estratégica: em Dezembro de 2001, e ao cabo de mais de uma década de negociações, a China foi aceite como membro de pleno direito na Organização Mundial do Comércio (OMC). Durante esse período de negociações, os empresários portugueses - principalmente os dos sectores tradicionais - foram alertados por sucessivos governos para a necessidade de adaptação àquilo que seria o impacto da entrada do Império do Meio no comércio global. Em larga medida, era impossível de antecipar e principalmente de mensurar esse impacto - até porque a China estava a ‘vender a teoria do ‘um Estado, duas economias (isto é, comunismo e capitalismo envolvidos na herança do maoismo, numa ‘salada que ninguém esperava e todo o Ocidente achou que não ia dar certo). Certo ou não, a verdade é que os empresários portugueses optaram, em muitos (demasiados) casos por não fazer nada: logo se veria o que ia acontecer. À portuguesa, portanto. E o que aconteceu já faz parte da história: deslocalização de produção para a China, mercado inundado com preços imbatíveis, falências em catadupa em Portugal (como noutros países), desemprego, descida do nível de vida, e por aí adiante, num ‘rosário para todos e sem um verdadeiro fim à vista.
Não foi, como é evidente, a única, mas na Zarco não aconteceu nada: "A entrada da China na OMC não nos afectou", recorda Carlos Santos, uma vez que o mercado que a empresa tinha escolhido como alvo não fazia parte dos segmentos que a produção chinesa atacou.
Mas o empresário não se distrai facilmente e não perde o foco. "Não estou a dizer que nada nos pode afectar por vendermos para o topo da pirâmide do consumo. Neste momento, os mercados francês e russo estão a comprar cada vez menos", o primeiro por via da contenção orçamental decidida em Paris (ou terá sido em Berlim?) e o segundo pelo embargo que a Europa, essa sim distraída e sem foco, impôs ao país dos czares - com o último deles, Vladimir, a entrar em tropelias na Crimeia (como sempre) e na Ucrânia. Quanto ao mercado africano, que por estes dias anda a dar uma enorme dor de cabeça a muitos empresários portugueses, "quase não tem exposição".
Castro Almeida conta ainda uma história que envolveu ambos: "Muita gente diz que a maior qualidade do Carlos Santos não é ser modesto e um dia perguntei-lhe, já que ele estava sempre a falar dos avanços e incrementos da qualidade da sua produção, se se considerava o melhor fabricante de sapatos do mundo. Respondeu: ‘sou apenas o segundo melhor . O melhor é, disse, uma pequena fábrica no Reino Unido pela qual tem fascínio, e cujo nível de qualidade quer atingir. Aspira a ser o primeiro, sente que lá está a chegar mas ainda não atingiu a perfeição. A qualidade para ele é um estado de espírito", remata.
A Zarco do outro lado do espelho
A Ocraz é a outra empresa do grupo - o nome é bizarro, mas tem uma explicação simples: é Zarco ao contrário. Actualmente, é uma empresa que faz costura em sapatos, função que é subcontratada pela Zarco, sua única cliente. A Ocraz é também outra coisa: é uma das mais dolorosas experiências empresariais de Carlos Santos (que isola a sua criação como a pior decisão da sua vida de trabalho).
Voltemos muitos anos atrás: em 1990, Carlos Santos e o seu sócio decidiram que, paralelamente à Zarco, deveriam ‘cavalgar o bom momento que o mercado global reservava aos sapatos de ‘produção intensiva (ou "produto de concorrência", como lhe chama). Criaram a Ocraz, "que em pouco tempo passou a facturar muito dinheiro", mas que não sobreviveu à concorrência que vinha de outras bandas.
Resultado: a produção tornou-se inviável. Aconteceu muitas vezes antes, aconteceu muito por essa altura - nomeadamente em São João da Madeira e em Felgueiras - e há-de continuar a acontecer. O que é que um empresário faz nessa altura? Vem nos livros (bom, em alguns): apresenta-se a empresa à massa falida, deixa-se os credores a guerrear entre si - com os trabalhadores desgraçadamente convencidos de que os seus créditos são prioritários em relação à banca e aos fornecedores - e vai-se para casa calmamente, ver televisão, jantar com os amigos, fazer uma viagem, passear à beira-mar, qualquer coisa que faça esquecer depressa uma coisa que já só é um problema dos outros.
Volta a não ser exemplo único, longe disso, mas o certo é que Carlos Santos não foi para casa, não fez nenhuma viagem, não foi ver televisão - de que aliás gosta pouco - talvez tenha passeado à beira-mar mas para pensar muito no assunto: a Ocraz era um assunto seu. "Demorei muitos anos a pagar a factura, talvez uns 15", mas a empresa ainda existe, ainda dá trabalho, é viável, é uma cicatriz daquelas de que nos orgulhamos.
"O exemplo da Ocraz serve para poder dizer que o meu pai é o homem mais honesto que conheci no mundo dos negócios", esse onde as tropelias, os enganos, as rasteiras e as traições são muitas vezes elevadas à categoria de gestão de excelência. É a administradora Ana Raquel que o diz - e está a falar do próprio pai, mas o certo é que as dezenas de histórias de falências mal explicadas dão-lhe razão.
É por certo esse primado da razão que leva Carlos Santos a afirmar: "Ainda tenho muito para dar a esta empresa" e atirar para as calendas a sua própria idade de reforma. A história da empresa vem em seu auxílio. A pessoal também: "Sempre gostei de viajar, mas quando chegava a uma cidade, a primeira coisa que fazia era ir olhar para as montras das sapatarias, com a família toda atrás, a barafustar, mas ficava arreliado se não fosse". Ana Raquel solta uma sonora gargalhada quando lhe lembram a história: "Era uma chatice", afirma, mas entre os dois, a geração actual e a geração seguinte, nota-se uma enorme cumplicidade - que é, afinal, a garantia de continuidade da empresa Zarco.
E quando se reformar? "Talvez compre um cavalo", como teve em tempos e é uma paixão que não desapareceu, talvez passe a gozar da casa ao fim de tantos anos e consiga estar mais com a família. Talvez dê mais passeios à beira-mar na procura de uma serenidade raramente sentida durante tantos anos de uma vida inquieta de trabalho.