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Kyaia:Das fábricas do Norte para as montras do mundo

quinta-feira, 3 de setembro de 2015
Kyaia:Das fábricas do Norte para as montras do mundo

Fortunato Frederico e o seu sócio, Amílcar Monteiro, são os homens por detrás da construção do maior grupo português de calçado, a Kyaia.
Têm natureza de empreendedores. Com fábricas em Guimarães e Paredes de Coura, e artilhados com a marca Fly London, conquistam clientes e somam distinções em quase 60 países.

Uma história em comum
São 30 anos de história - e de histórias. Construíram a maior empresa portuguesa de calçado, a Kyaia, têm a marca nacional de sapatos com maior notoriedade no mundo, a Fly London, empregam mais de 600 pessoas entre as fábricas de Guimarães e Paredes de Coura e assumem que não querem ficar por aqui. Uma ambição que já os levou a colocar em marcha um plano de expansão a aplicar faseadamente até 2024 e que envolve um investimento de dez milhões de euros e a criação de mais 300 postos de trabalho. O objectivo é continuar a crescer, ser a maior indústria do sector no mercado ibérico e, se possível, ir além dos Pirenéus. "O meu sonho foi sempre ser, no mínimo, a maior empresa de calçado da Península Ibérica, mas era capaz de alargar os horizontes", como Fortunato Frederico já revelou às câmaras do ETV. Oempresário é a cara da empresa, mas não está sozinho nesta aventura: Fortunato Frederico conta com a parceria de Amílcar Monteiro, o sócio menos conhecido, mas nem por isso menos envolvido neste negócio de sucesso.

Os primeiros passos
A liderança e empreendedorismo de Fortunato Frederico são reconhecidos. Que o diga Artur Santos Silva, presidente da Fundação Calouste Gulbenkian e fundador do grupo BPI, que enfatiza o perfil de grande líder do empresário português. "Impulsionou uma revolução no sector e é, a nível pessoal, uma pessoa de qualidades excepcionais.

Tenho um grande respeito pela obra que têm feito, que tem reflexos na empresa e cujo esforço se espalhou a todo o sector", sublinha.

Luís Filipe Costa, actual administrador do Montepio Investimento e ex-presidente do IAPMEI, reforça a avaliação do antigo banqueiro. "Os empresários Fortunato Frederico e Amílcar Monteiro representam o que de mais genuíno, determinado e inovador existe no tecido empresarial português e no panorama do empreendedorismo em Portugal", afirma.

No princípio, foi o sonho. Um sonho construído na guerra, mas cujas raízes vinham do tempo em que trabalhou na Campeão Português, uma das maiores fábricas de calçado no tempo da ditadura, conhecida à época como a "universidade do calçado". Conta o professor de Economia, Alberto Castro, que um certo dia o dono da Campeão Português, Domingos Ribeiro, perguntava aos trabalhadores o que queriam ser na vida.

Fortunato Frederico, ainda com uns 19 anos de idade, terá respondido: "Quero ser como o senhor!"

Um aliado perfeito
Kyaia é o nome de uma pequena localidade em Angola onde Fortunato Frederico esteve nos tempos da guerra colonial e onde manteve vivo o sonho de criar a sua própria empresa de calçado. Já bem depois da Revolução dos Cravos e de batalhar por um lugar ao sol no sector, cria a Kyaia e, visionário, leva consigo um jovem colega, Amílcar Monteiro. Uma aposta que o tempo confirmou ser certeira. "São pessoas muito distintas, que aprenderam a complementar-se, é difícil pensar a empresa sem os dois", comenta Alberto Castro.

Se Fortunato Frederico é descrito como uma pessoa afável, de falar fácil, que cria rapidamente empatia, Amílcar Monteiro é tido como recatado, racional e discreto. Uma fonte ligada ao sector do calçado conta que Fortunato Frederico achou que Amílcar Monteiro seria o parceiro ideal: mostrava conhecimento, falava línguas, tinha um perfil técnico de competência e percebia bem os mercados. Hoje sabe-se que, um dia, a Kyaia ficará nas suas mãos. "É o braço direito do sr. Fortunato, o fiel companheiro", reconhece Alberto Castro.

O presidente da Kyaia, que abandonou os estudos no seminário aos 14 anos, domina apenas a língua portuguesa - não que isso alguma vez tenha sido um entrave.

Exemplo disso foi o que aconteceu nos primeiros tempos da Kyaia. Fortunato Frederico foi a Paris para participar numa feira de calçado e, quando chegou a uma rotunda, ficou em dúvida de qual seria a direcção certa. Contornou a rotunda várias vezes, talvez à espera que surgisse uma intuição premonitória, até que um polícia que observava o movimento o mandou parar. Sem falar uma palavra de francês, mas com certeza apelando ao seu melhor gesticular, Fortunato Frederico conseguiu que o polícia o escoltasse até ao certame. Esta capacidade de cativar e negociar está-lhe no sangue, dizem os mais próximos.

Fortunato Frederico tem a escola da vida e do trabalho, mas é um curioso por ciência política, filosofia, leitura - gosta de ler Fiodor Dostoievski ou Gabriel Garcia Marquez, assim como ouvir jazz ou música gregoriana. Em Guimarães, na sua Quinta da Eira do Sol, empenhou-se de mãos e tesoura na construção de um jardim japonês. Na sua história, conta ainda com a militância no Partido Comunista Português, tendo mesmo sido candidato nas eleições de 1975 à Assembleia Constituinte. O empresário foi ainda dirigente da Comissão Política Concelhia de Guimarães do PCP. O mundo da política ficou nos idos da década de 70 do século passado.

A revolução da ‘mosca
Foi também com Amílcar Monteiro que conquistou boa parte do seu sonho: ter uma marca própria. Um desentendimento entre os dois sócios ingleses pôs a ‘mosca à frente dos olhos de Fortunato Frederico e Amílcar Monteiro. E não é que a Fly London era tudo o que desejavam? Uma marca com um nome forte e internacional, um símbolo atraente e distinto, com uma imagem que permitia a diferenciação. Amílcar Monteiro também ficou cativado com aquele feliz encontro e motivou o seu sócio a avançar com a compra. Foram-se as economias, mas ficou o futuro.

Amílcar Monteiro "conhece muito bem os mercados, viaja muito, é uma pessoa muito curiosa, que gosta de avaliar o comportamento dos mercados" - assim o descrevem. Este empreendedor, que faz dezenas de feiras por ano, tem por hábito agendar umas horas para visitar as ruas, ver as montras, o que as pessoas estão a comprar. "Isso torna-o determinante na tomada de tomar decisões", garantem.

A Fly London já passou a maioridade e tem somado conquistas. Este ano, a marca prevê que os Estados Unidos da América (EUA)sejam o seu principal mercado, destronando o Reino Unido - país que durante todos estes anos se deixou cativar pela irreverência do design da marca. Fortunato Frederico, mas sobretudo Amílcar Monteiro, viajaram dezenas de vezes para os EUA nestes últimos cinco anos, marcando presença em feiras, contactando distribuidores, observando os hábitos, gostos e costumes daquele país. Há quase um ano abriram uma loja da marca em Nova Iorque, com o projecto faseado de criar uma rede de, pelo menos, seis espaços nos EUA. A Fly London, que marca presença em quase seis dezenas de países, tem já lojas em Portugal (três), Reino Unido (duas), Irlanda (uma) e Dinamarca (uma).

Não há rosas sem espinhos
Nem tudo foi rosas neste longo percurso. Entre os espinhos, contam-se fatalidades pessoais que ensombraram a vida de Fortunato Frederico. Do lado profissional, os dois empreendedores também conheceram os seus desaires - mais doloroso talvez tenha sido o fim da parceria com a Investvar, empresa que produzia e comercializava a marca norte-americana Aerosoles. A Kyaia fez algumas parcerias com a empresa de Artur Duarte na área da distribuição para a Europa, incluindo Portugal, que acabaram em perdas financeiras para o grupo de Fortunato Frederico. Pouco depois, deu-se o desmoronar da Investvar, com dívidas de 37 milhões de euros e a perda de qualidade do maior exportador português de calçado.

Fortunato Frederico tem "uma forte componente de ambição, mas não é uma ambição desmedida. Faz apostas que não ponham em causa o essencial para que, se correrem mal, haja garantia para os que estão com ele", adianta Alberto Castro. Apesar de beliscado, o grupo passou por cima do caso Aerosoles. E a Foreva, rede portuguesa de sapatarias ,é outro bom exemplo.

Tirar lições dos erros
Luís Filipe Costa tem "uma enorme admiração e respeito por estes dois homens, para quem as dificuldades são apenas obstáculos a serem ultrapassados, e a quem a vida nem sempre poupou a alguns infortúnios". O gestor sublinha ainda que, desses dissabores, "nasceu sempre uma vontade ainda mais inquebrantável de triunfar e de ser útil à sua comunidade e ao seu país".

A Kyaia comprou as lojas Foreva e Sapatália (marca que entretanto abandonou), em 2004, quando estavam à porta da insolvência. Reestruturou a cadeia de sapatarias, mantendo os postos de trabalho, deu-lhes uma nova imagem e um percurso. Quando a crise assolou o país, em 2008, o consumo caiu a pique e as vendas da Foreva começaram a ressentir-se e os prejuízos a acumular. Contra tudo e todos - havia vozes dentro da Kyaia que pediam o fim deste negócio -, Fortunato Frederico aguentou o barco. Como chegou a dizer ao Diário Económico, enquanto a parte industrial aguentar este negócio, vamos mantê-lo. "É a nossa responsabilidade social, não queremos acrescentar mais desemprego ao país", disse. Como salienta Artur Santos Silva, "os colaboradores são tratados como pessoas e não como colaboradores, são motivados, estimulados os mais qualificados e isso são características de grandes líderes", sublinha. A Foreva já viu luz verde no final do ano passado. 


‘Pequeno valente
É valente, reconhecem. No Japão, Fortunato Frederico ficou inclusive apelidado de ‘Pequeno valente (é de baixa estatura), dada a sua força em enfrentar os desafios.

Reza a história que o empresário estava numa viagem de prospecção do mercado japonês, quando foi desafiado a beber uns ‘shots com os seus pares japoneses e a ver quem se aguentava mais. "Foi uma batalha ganha com muito sacrifício e que durou horas", dizem. Fortunato aguentou a estopada, criou uma boa relação com o grupo de japoneses e ganhou "muito respeito". A partir daí ficou o ‘Pequeno valente . Também Alberto Castro o reconhece como "um negociador feroz, duro, que junta uma componente de emoção humana , de inteligência emocional".

Agora, os dois empresários querem ganhar uma nova batalha. Com a marca própria Softinos buscam um mercado que, à noite, calça Fly London e de dia pretende um sapato bonito, mas confortável. O objectivo é, com tempo, criarem uma marca internacional com o reconhecimento que tem a Fly London. O plano de expansão industrial previsto para Guimarães e Paredes de Coura prevê já esse crescimento da Softinos.

Fernando Brogueira, director-geral da Move On (empresa que resultou do processo de insolvência da Investvar), esteve no início do processo da Softinos e reconhece a visão dos dois sócios da Kyaia, das "pessoas mais importantes da indústria do calçado". Amílcar Monteiro "está muito à frente dos seus pares, trabalha bem a área comercial e a marca", diz. "Fortunato Frederico é o presidente da APICCAPS, os resultados e a obra falam por si", realça. Para Luís Filipe Costa, são "dois dos melhores empresários portugueses, a quem o país muito deve, que souberam fazer de um sector dito ‘tradicional um dos mais dinâmicos e inovadores da economia nacional".


Uma indústria de moda
Fortunato Frederico vai no sexto mandato à frente da APICCAPS (associação do sector do calçado) e, nestes mais de 16 anos de presidência, tudo ou quase tudo mudou na indústria portuguesa de calçado. Artur Santos Silva realça o espírito de concorrência e cooperação que conseguiu imprimir ao sector, nomeadamente ao nível tecnológico, de estudos de mercado e da relação com a investigação, que proporciona a inovação. "Nenhuma empresa teria condições para criar um centro tecnológico como o que foi criado, de grande qualidade, que permitiu que o sector tivesse dado um grande salto", diz.

O trabalho de ligação às universidades, para inovar nos processos, a aposta na formação contínua dos colaboradores, a cooperação para ganhar mercados externos, esforços que acabaram por transformar um sector. Hoje o calçado vale "3,5% de todas as nossas exportações e, em 15 anos, conseguiu multiplicar por dez o preço" unitário do produto, frisa o ex-banqueiro.

Luís Filipe Costa sublinha que a APICCAPS é "talvez a associação mais dinâmica e inovadora de Portugal, tendo tornado a indústria portuguesa de calçado numa referência a nível mundial, com publicações de natureza estatística e iniciativas de carácter comercial de altíssima qualidade".


Fonte: Económico,25.ago.2015
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